O Ego do Professor de Yoga por Simão Monteiro
Esta reflexão resulta de uma observação atenta de mim mesmo como praticante e professor de Yoga nos últimos 8 anos e meio. Boa parte deste texto é autobiográfico, coisas que fiz, que faço, outras que já melhorei e outras tantas que tenho que melhorar. Aqui e ali juntei características e aspectos de outros professores que tenho observado no diverso mundo Yogi da actualidade.
Eu sou professor de Yoga !
Hoje em dia existe um número crescente de praticantes de Yoga, nomeadamente no Ocidente. E com isso sobe também o número de instrutores, professores e mestres. Encontramos todo o tipo de oferta para a pessoa que se quer tornar professor desta bela e antiga cultura que é o Yoga. Mas será que todos os que se tornam professores têm consciência daquilo que representa ser professor de Yoga?
Facilmente uma pessoa pode tirar um curso de um mês, uma semana e até um fim-de-semana e tornar-se num “professor” de Yoga. Qualquer pessoa, mesmo sem qualquer ideia do que seja o Yoga pode, em pouco tempo, estar a ensinar a uma outra. Muitas dessas pessoas, descontentes com a sua profissão, acham no Yoga uma oportunidade para salvar a sua vida. Mas, uma coisa é praticar o Yoga e outra é ensiná-lo !
Então temos por aí muito boa gente ensinando com pouquíssima prática, algum conhecimento de técnicas e quase nada do contexto e tradição. Falta, em muitos casos, a presença de alguém que a acompanhe e ensine, a prática, o amadurecimento, os valores, etc. Mas falarei sobre isso mais adiante.
O problema surge quando o professor de Yoga se acha o máximo apenas por isso mesmo, ser professor de Yoga. Aí começa a história do ego do professor de Yoga. O ego é algo importante na nossa vida, no sentido que é através dele que o indivíduo estabelece relações com os demais indivíduos. O ego em si não é um problema, um ego inflado sim. Um ego inflado de um professor de Yoga leva-o a pensar que é um ser especial e superior aos demais. Quando alguém lhe pergunta o que ele faz (ou mesmo quando não lhe perguntam) ele exclama aos quatro ventos: Eu sou professor de Yoga !
Lembremo-nos que um professor, mesmo tratando-se de um real professor de Yoga, é apenas um praticante dedicado com alguma experiência num assunto, não é um mestre, ainda tem caminho para percorrer. Essa arrogância que é verificada em muitos professores advém de uma identificação com esse papel, o de professor. Quando o professor de Yoga é também vegetariano pode tornar-se duplamente arrogante com os outros, ao considerar que também o facto de comer vegetais é sinónimo de pessoa mais iluminada.
Relembro aqui uma frase que gosto muito do professor Iyengar: “Quando passamos a sentir-nos apartados dos outros ou superiores a eles, mais puros ou mais elevados por causa do Yoga, é certo que entrámos na calmaria ou estamos à deriva, sendo arrastados de volta a um estado de ignorância”.
O professor sabe-tudo
Dentro da comunidade “Professor de Yoga” encontramos de tudo. E uma dessas categorias é o professor “sabe-tudo”. O professor sabe-tudo é aquela pessoa que, por saber de Yoga, pensa que o Yoga pode ajudar toda a gente por exemplo. Esta pessoa aventura-se em áreas delicadas, como lidar com pessoas com doenças mentais, problemas graves de saúde, entre outros, pensando que o Yoga as poderá salvar. Ora, lembremo-nos que o Yoga serve para nos ajudar no nosso caminho para moksha, a libertação, tudo o resto é secundário. Os efeitos terapêuticos do Yoga são reais, mas esse não é o seu objectivo principal e para além disso, para se praticar Yoga são necessárias vontade e consciência por parte do praticante, senão que raio de Yoga estará a fazer ?
Porquê querer que o Yoga sirva para tudo? Para quê querer levar o Yoga a todas as pessoas, mesmo àquelas que não o pedem nem têm capacidade para tal? Para quê metermo-nos em áreas que já têm especialistas, pessoas que se dedicam àquilo? Porque não nos concentramos naquilo a que o Yoga se propõe? Será que não é suficiente ?
Porque esse professor de Yoga (o do ego inflado) quer protagonismo. Pensa que por saber meia dúzia de ásanas e pránáyámas pode ajudar todas as pessoas. Pode-se pensar que tem boas intenções por querer ajudar o outro mas, na realidade o que o move é a sua auto-promoção e por vezes inocência misturada com ignorância e teimosia, também.
Provavelmente é aquele mesmo professor que gosta de ser o centro das atenções numa conversa. Fala muito, não consegue estar em silêncio e ouvir os demais, quer expor todos os seus pontos de vista (que são muito válidos pois afinal ele é professor de Yoga), fala, fala e fala, das “suas” teorias, das “suas” descobertas, das “suas” façanhas, dos “seus” alunos, das suas aulas, dos cursos que dá, dos eventos que realiza…
O professor sabe-tudo é também aquele que, estando a praticar numa aula ministrada por um outro professor, gosta de olhar para os outros enquanto praticam. Mas ele não se limita a dar uma espreitadela, ele olha com os olhos de professor, não com os de praticante que deveria ser naquela altura, para ver o que a turma está a fazer. Muitas vezes ele ainda se aventura a corrigir os alunos, a dar dicas, a parar sua prática para ir mexer em alguém ou mandar opiniões para o ar. Ele simplesmente não consegue largar o papel de professor, não consegue apenas praticar descansado e concentrado. É uma situação chata, pois tanto o real ministrante como os demais praticantes sentem-se incomodados com aquele intruso, que não é nem praticante nem o professor daquela prática (ou palestra, ensinamento, etc.).
Tenho muitos livros, um certificado passado na Índia e consigo colocar o pé atrás da cabeça !
Existem professores de Yoga que gostam de acumular livros sobre Yoga nas prateleiras de sua biblioteca. Vão comprando e comprando com a esperança de nalgum dia poderem lê-los ou simplesmente porque ter muitos livros, pensam eles, já é sinónimo de conhecimento. E quem diz livros, diz todo o tipo de material relacionado com Yoga, cd’s, dvd’s, etc…
Outra situação que pode inflar o ego do professor de Yoga é uma viagem à Índia. Muita gente vai para a Índia em busca de um certificado passado lá por um “guru” qualquer, para depois voltar e poder dizer que praticou Yoga na Índia com um indiano, como se a simples viagem à Índia fosse sinónimo de evolução.
Nos últimos anos o Yoga vem ganhando cada vez mais adeptos e muito se deve ao aspecto mais superficial da prática, o ásana. Grande parte dos praticantes, especialmente no ocidente, baseia a sua prática de Yoga na parte corporal. Desenvolveu-se todo um arsenal de posturas e acessórios para realizar as posturas na perfeição e ficou esquecido a parte da meditação, do ensinamento, dos valores e da tradição. Vê-se grandes executantes de ásanas, dedicando-se anos e anos a aperfeiçoar o alinhamento do dedo mínimo do pé, um centímetro mais aqui ou mais ali. Metem o pé atrás da cabeça mas tropeçam nos yamas e niyamas.
Eu reparo que a maior parte desse pessoal vai ficando cada vez mais quadrado, mais viciado e fechado naquilo, vivendo para aperfeiçoar o seu corpo, tentando ganhar a todo o custo (mesmo de lesões) mais uns centímetros de alongamento, mais força, alimentando seu ego, obcecados com a forma ou na esperança de ter um corpo imortal. Temos por aí professores muito bons a realizar posturas mas ao mesmo tempo fora do contexto do Yoga, longe daquilo a que o Yoga se propõe, longe do conhecimento.
Falta humildade e simplicidade nos professores de Yoga. Chega a um ponto em que deixam de praticar com outros professores. Muitos rejeitam a ideia de um mestre que os possa ensinar e ajudar no caminho para moksha. Eles acham-se sabedores. Muitos simplesmente param de aprender, estagnam, ficam demasiados orgulhosos para se “submeterem” ao ensinamento de alguém. “Quem é esse professor para me ensinar?” dizem eles.
Ao professor quadrado falta-lhe adaptabilidade e aceitação, de si mesmo e de tudo o que o rodeia. Gosta de criticar as pessoas (não yogis, ou yogis de outra espécie), o sistema e o mundo em geral. É aquela mesma imagem de alguém todo alternativo e contra o sistema mas bebendo Coca-Cola e fumando Marlboro. Se vai a uma aula em que lhe seja sugerido algo diferente (digamos apoiar a mão em cima de um bloco num trikonásana), torce-se todo por dentro, evita fazer e se tiver mesmo que fazer o seu orgulho fica ferido, como se usar um bloco fosse sinal de deficiência. É o mesmo professor que não gosta de ser corrigido ao praticar, espera sempre que a sua prática seja perfeita e suas palavras repletas de interesse. Sente um arrepio na espinha e uma irritaçãozinha quando alguém lhe põe as mãos em cima para o ajudar.
Uma marca chamada Yoga
Com a crescente proliferação do Yoga no ocidente, surgiram todo o tipo de métodos. Existe Yoga para tudo, para homens, mulheres, crianças, bebés, cães, gatos, empresários, desportistas, homossexuais, pessoas assim e assado, todos os estilos, todas as formas… mistura-se tudo, Yoga com Pilates, com surf, com tai-chi, com dança, com religião, com massagens… Hoje o Yoga é um ingrediente fundamental na salada russa da moderna espiritualidade ocidental.
Então o Yoga termina sendo um produto, uma marca, e muito rentável por sinal. E como vivemos num mundo competitivo e porque faltam coisas fundamentais na formação do professor de Yoga, este tende a tornar-se competitivo também. Mais dia menos dia terá que inventar o “seu” Yoga, inventando novas técnicas, novas acrobacias, coisas arriscadas e espectaculares de preferência. Métodos “secretos” de meditação e iluminação que só podem ser passados a alguns em retiros de iniciação para pessoas avançadas (aqueles que têm mais dinheiro para pagar).
Esse tipo de professor é aquele que gosta de aparecer na TV, nos jornais, em tudo que mexa com exposição pública, para poder vender melhor o seu produto, o Yoga. Esse professor torna-se num empresário, veste fato e gravata se for preciso, passa o dia a distribuir flyers na rua e a pensar em novas maneiras de atrair clientes. Porque para ele e para que o negócio do Yoga renda, os alunos não passam de clientes.
E com toda esta competição aberrante têm que se formar mais instrutores, para que estes alimentem os que estão mais acima na pirâmide. E ao formarem-se mais professores (e na maioria dos casos professores sem base, sem estrutura), mais difícil é arranjar trabalho, e quando isso acontece o professor sujeita-se a qualquer coisa. Trabalha em dez locais diferentes, passa o dia a viajar de um lado para o outro, deixa de fazer a sua prática pessoal, deixa de estudar, não tem tempo para nada, apenas para fazer uns gestos mecânicos ao som de música new age.
E é aí que surge a conversa do: “Meu Yoga é melhor que o teu, é o mais completo, o mais perfeito, o mais antigo!”. “O meu mestre é o melhor e o mais iluminado do mundo”. O que resta do Yoga? Daquilo que representa o Yoga? Nada, ou quase nada. Os valores perdem-se, alimentam-se as diferenças e as guerras de personalidade. E o pior de tudo é que isso é transmitido aos praticantes de Yoga, àquelas pessoas que de forma genuína buscam o verdadeiro Yoga.
Os equívocos e as distracções
Sempre penso que muito daquilo que tenho estado a escrever deve-se à crescente falta da prática e do estudo do Yoga por parte do professor de Yoga. É essencial o professor continuar a manter a sua prática pessoal, o seu estudo, o aprender com outros professores. Tudo isso mantém-nos purificados, centrados, alinhados para podermos, pouco a pouco, aprofundar no conhecimento do Ser que somos.
Muitos dos equívocos que surgem no seio do Yoga devem-se à falta do contexto, ao esquecermo-nos que há uma tradição que tem milhares de anos, ao esquecermo-nos que há um ensinamento de valor incalculável, ao esquecermo-nos que houve alguém que nos ensinou e outros que continuam a ensinar.
Por toda esta tradição, por tudo isto que nos foi dado, por este privilégio que é poder praticar e ensinar o Yoga, temos uma grande responsabilidade em mãos, temos o dever de ensinar de forma correcta e adequada a cada aluno. Não fazer dos alunos cobaias das nossas invenções e inseguranças. Não ter falta de cuidado na hora de ajustar o aluno, estar focado para que nada de menos bom aconteça. Muito menos cultivar aquela atitude de professor durão que chega à aula e quer pôr o pessoal todo a suar. Tem professor de Yoga que gosta de fazer aulas muito duras só para que os alunos, ao terminarem a classe, comentem que ele é duro e exigente e no dia seguinte possam sentir os músculos do corpo todos doridos. Não cair na tentação de fazer ajustes muito fortes só porque metemos na cabeça que aquele aluno tem que fazer o ásana que está no livro.
Não há maior equivoco que a ideia de que um bom professor de Yoga é aquele que faz os ajustes mais fortes e dá as aulas mais puxadas.
O ego do professor de Yoga também pode resultar numa atitude de insegurança. É o exemplo típico do professor que não faz mantra na aula pois tem vergonha e receio do que os alunos vão pensar. Se ele já faz o mantra habitualmente mas entra um aluno novo lá vem de novo o embaraço… Temos que ensinar aquilo que aprendemos, gostamos e sabemos. Não podemos fazer uma aula puxada só porque um aluno gosta de malhar nem uma aula toda deitados porque um outro só quer descomprimir do dia de trabalho. Não podemos ter receio de perder alunos, esse é um dos maiores medos do professor de Yoga, ele vive sobressaltado com a ideia de perder alunos e com isso o dinheiro para pagar suas despesas. Ele não confia nas suas capacidades e muito menos na ordem natural do universo.
O meu professor Pedro Kupfer sempre diz que não há coisa pior num professor de Yoga que ser chato. Ninguém quer praticar com um professor chato, com aquele chato que chega todos os dias na aula com cara séria para impor respeito. Aquele professor arrogante que gosta de impor e exigir demais das pessoas, que quer que as pessoas sejam como ele, ou melhor, com a ideia distorcida que ele tem de si mesmo como sendo um super humano.
Esquecemo-nos facilmente que só existe professor quando há aluno. É o aluno que dá sentido ao papel do professor. São os alunos que nos permitem continuar neste caminho abençoado, que é o de praticar e ensinar o Yoga. Com eles aprendemos sempre muito e graças a eles mantemo-nos em estreito contacto com o ensinamento que estamos a passar.
Qualidades a serem observadas no bom professor de Yoga
Mas como se costuma dizer “enquanto há vida há esperança”, enquanto vivermos temos sempre oportunidades para nos melhorarmos e crescermos no Yoga. Assim, penso ser importante cultivar algumas coisinhas, que nada mais são que o aplicar da ética do Yoga, os famosos yamas e niyamas, ou os valores descritos na Bhagavad Gitá.
É importante que nós, professores de Yoga, tenhamos a capacidade de falar e ensinar ao nível das pessoas. De pouco adianta usarmos termos complicados que a pessoa não irá entender, nem tampouco tentar ensinar e dar aquilo que a pessoa não quer ou não precisa nesse momento. Devemos desenvolver a compaixão pelos outros, tornamo-nos em contribuidores (expressão que o Swami Dayanandaji muito repete) na sociedade onde vivemos.
Como bem ensina Patañjali devemos desenvolver uma atitude de compaixão perante aqueles que sofrem, amizade perante os que estão felizes, neutralidade perante quem realiza acções equivocadas e alegria perante os que realizam acções virtuosas. Tudo isto, bem como o cultivar a não-violência, a verdade, etc., resultam do principio básico do dharma: não fazer aos outros o que não gostamos que nos façam a nós. E para isso tem que haver um entendimento profundo e completo do valor dos valores e para esse entendimento acontecer temos que observar-nos constantemente durante o dia, em todos os momentos, em todas as acções.
Cultivar o belo valor de kshánti, a aceitação, o saber acomodar todas as pessoas, independentemente da sua história, das suas acções e reacções. Ao libertarmos a pessoa de nosso julgamento libertamo-nos a nós próprios e não há nada na vida que o yogi mais preze que a liberdade e simplicidade. Se não conseguimos acomodar as pessoas viveremos com o peso das expectativas e frustrações que, equivocadamente, projectamos nessas pessoas.
Ensinar aquilo que sabemos, fazermos a nossa prática pessoal, continuar a praticar e aprender com o nosso professor e outros que sejam um exemplo vivo daquilo que representa o Yoga. Respeitar e honrar a tradição do Yoga e não utilizar o Yoga para fins egoístas.
Termino com uma sábia frase do Swami Dayananda: “Íshvara, possa eu desfrutar e ter a maturidade de aceitar simplesmente o que não posso mudar, a vontade e o esforço para mudar o que posso, e a sabedoria para saber a diferença”.
Sábado, 24 de Outubro de 2009
Publicado por Simão Monteiro em
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Olá boa tarde, é com apreço que registo as linhas escritas. Obrigado pela humildade inteligente e despretensiosa. Um abraço.
Dalarp.